quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O Vestido e a Lama

Vestido longo, se arrastando pela avenida molhada de chuva e suja de terra.

A lama estuprou violentamente a pureza branca do traje matrimonial, que dó. Aquele vestido havia sido escolhido a dedo e agora estava arruinado. Pedaços de pano estavam espalhados pelo chão imundo, afinal, depois de sujo e maltrapilho por escolha consciente, a noiva resolveu fazer picote de seus sonhos e planos, rasgando o vestido em pedaços, toda a extensão da calda até a altura dos joelhos.
Os olhos se mantiveram imaculados na doçura, em expressão se mantinham firmes, já em estética estavam péssimos: Todo aquele caminhão de maquiagem havia borrado com as gotas gorduchas da chuva, o resultado era visivelmente catastrófico. O sorriso, como a expressão do olhar, se manteve o mesmo desde o altar até o momento desesperador da rasgação, terno e confortável à vista. Os cabelos embaraçados e cheios de arroz recém jogado, sua cabeça era uma plantação de cereais e ideias perturbadoras.

Engraçado como dependendo da situação a mesma expressão facial pode indicar normalidade ou psicopatia.

Junto aos restos sujismundos de vestido espalhados pelo chão, estavam os vários nomes de amigas solteiras, fadadas agora ao fracasso lamacento emocional. Todas as que apostaram sorrisos e votos de boa sorte agora estavam envoltas da energia negra da desistência. Nenhuma tinha culpa, e na verdade poucas delas saberiam do ocorrido. Era uma questão intima, mas todas estavam ali, jogadas na lama e de conchinha com os sonhos desfalecidos.

Sonhos encharcados e sujos de terra.

A noiva era uma figurante bizarra na cena. O foco estava para os finalmentes, dando pouca ou nenhuma importância aos motivos. Era uma mulher na flor da idade, sendo regada pela tristeza apócrifa da incerteza, abandonando as vigas de sustentação da própria existência, entrando de cabeça na maiêutica socrática, procurando sua liberdade na raiz do questionamento, buscando redenção e principalmente limpeza na tempestade mais próxima, que afinal sempre serviu para lavar a alma.

Prefiro ser viúva de um sonho do que noiva de um aprisionamento. Não tiro o mérito da conquista de meu amado mal amado, mas me faltaria liberdade para sorrir flertando em direção aos outros rapazes, ou para me engalfinhar em amassos maliciosos com outros ''eles ou elas'', ou ambos juntos, três, quatro, dez... quem liga? Fato é que não estou pronta para ''sermos'' quando ainda nem ''sou'' direito.

Lembrou do amor passado, o carinho encheu o peito, que esvaziou mais rápido ainda. Acordou no momento seguinte, transpirava e respirava pesado. Suas mandíbulas estavam contraídas e doloridas demais, o pesadelo havia causado isso. Pânico ao pensar na possibilidade belíssima de estar livre da obrigação, ter que escolher uma boa resposta entre ''sim'' , ''com certeza'' e ''sem dúvidas''.
Seu corpo escultural ainda estava amarronzado da lama. O inconsciente havia sido confortável durante as horas de desmaio, será que aceitariam uma inquilina irrequieta de volta?

''Adeus mundo cruel'' - ela disse então, e saiu marchando, avassalando a vida, atropelando os padrões, arrombando os portões, tratando com crueldade a vida que até então fora cruel, simplesmente por ter sido comum.

Um comentário: