sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Luz

A velha senhora cega estava impaciente com a falta de sono de seus netos, resolveu contar-lhes uma história que pudesse acalmar seus ânimos. Eles pediram para que ela contasse sobre sua cegueira, sempre foram curiosos a esse respeito:

 ''A pequena Luz tinha agora sete anos e desde que se recordava era cega como um morcego. Parecia maldade seu nome de batismo, talvez uma piada de muito mau gosto, mas os pais só descobriram sua cegueira dias depois de seu nascimento. A visão em si nunca lhe fez falta, mas toda sua família ajoelhava em preces todos os dias para que seus pequenos olhos funcionassem normalmente.
 A pequena garota era amada demais por todos que a conheciam, tinha sempre um sorriso no rosto redondo e palavras doces para quem tivesse ouvidos. Era bonita como uma boneca de porcelana e delicada como uma flor, além de ser muitíssimo inteligente para sua idade.
 Ela vivia em um lugarejo afastado da urbanização, tudo ao seu redor tinha cheiro de natureza e gosto de natural. Mesmo sem poder enxergar, Luz gostava de passear ao ar livre durante as tardes. Como não estudava no colégio, por falta de estrutura do mesmo, pedia para que a mãe lesse todo material disponível na biblioteca que fosse possível. Era uma menina interessada por tudo, a curiosidade era sua maior característica, e sua maior paixão era a música.
 Num dia de cantoria descompromissada, fez com que a melodia doce de sua voz se espalhasse pelos quatro cantos do mundo. Não era volume, mas a pureza que contaminava todo o ar de toda a terra. Impressionantemente  sua voz chegou a lugares mais altos do que castelos e mais longínquos do que a  China, foi escutada por quem precisava ouvir.
 Um dia apareceu um velho corcunda na cidade, fora guiado pela cantoria. Ele tinha um ar sábio apesar de uma aparência maltrapilha. Como a casa da menina era a primeira vista do lugar, logo na entrada da cidade, foi lá que ele bateu.
 Foi muito bem recebido pela família, eles eram humildes e não tinham muito dinheiro, mas hospitaleiros com certeza seriam sempre, lema da casa. Serviram-lhe sopa, prepararam-lhe um banho quente e lhe deram roupas novas de presente, ''um andarilho esfarrapado não seria bem recebido na cidade'' eles disseram para o homem.
 Comovido com a recepção calorosa dos desconhecidos, o homem corcunda resolveu lhes conceder um desejo, apesar de não pronunciar o milagre. Eles nem mesmo haviam lhe contado sobre a filha cega, que no momento estava colhendo frutas com os irmãos, mas o homem era maior do que as palavras e conseguiu ler seus corações. Viu que apesar da vida simples e feliz que tinham, também carregavam a tristeza como inquilina permanente da casa.
 Feiticeiro que era, em silêncio e de olhos fechados enxergou a menina iluminada. Num piscar de olhos fez com que ela pudesse ver com mais clareza do que todos os outros. No momento seguinte, já de estômago cheio e roupas novas ele se despediu e seguiu seu caminho. Não queria glorificação, apenas fez o que tinha de fazer, estava ali para isso afinal.
 Do outro lado da cidade, a menina tomou um susto com toda a luz que surgiu de repente e caiu no chão, ralando todo o joelho. Foi inundada de cor e informação visual, não sabia definir o que era o quê e isso lhe deixou atordoada demais. Desmaiou, e então foi carregada para casa pelos irmãos assustados...''

_ Certo vovó, mas se você foi curada... não sei se entendi. Você ainda é cega! - exclamou o mais velho.
_ Bem, você não me deixou terminar. - disse a velha paciente.
_ Mas eu quero saber o final logo! - respondeu o garoto.
_ Bem.. acho que seus irmãos dormiram. Posso te adiantar a história, mas depois você vai dormir, certo? - a velha Luz ainda era perspicaz. Sua audição era maravilhosa, permitira-lhe escutar os roncos baixos dos outros dois meninos.
_ Tudo bem, mas me diga logo, poxa vida. - o menino estava impaciente.
_ Pois bem então.. - e a velha contou o que tinha acontecido.

Horas depois, já passando da meia-noite, o menino ainda estava acordado. Ele rezava assustado, não queria dormir para não correr o perigo de sonhar com o velho feiticeiro corcunda. Devia saber que sua avó de mau humor não seria uma boa contadora de histórias bonitas, ainda mais se tratando da senhora mais amargurada e ranzinza de toda a cidadezinha. Passou a vida toda depois desse dia se lembrando das últimas frases que a avó disse antes de sair do quarto arrastando os pés:

'' O mundo é lindo quando você não precisa saber de sua feiura. Preferi o escuro confortável depois de passar anos vendo quão macabras as coisas eram. Botei meus olhos para namorarem com um punhal, já havia visto o suficiente.''

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