quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Leite Derramado

E o leite derramado já está quase coalhando. Criou uma poça gigantesca de sujeira láctea, que manchou uma vida inteira, e nem todos os litros d'água salgada que os olhos produziram foram suficientes para lavar tudo. Leite denso, espesso e branco, que embranquece toda história e apaga toda boa memória.
Depois do leite veio o resto: a vida foi passando devagar, em marcha realmente lenta. O leite foi ficando cada vez menos fresco na memória e a vida foi seguindo seu rumo despreocupadamente. Seguiu e seguiu, até chegar ao gosto de café, vida adulta. A mancha continuava lá, intacta e intangível, tornando o gole preto num marrom Pingado.
E mesmo que as borboletas tivessem seguido por outros caminhos, a ordem das coisas não poderia ter sido vista por outros ângulos. A teoria do caos se mostrou vigorosa e empapada de litros infindáveis de leite semi-desnatado, botando em ordem todas as coisas de forma desconexa, porém precisa. Não foi preciso engordar sadicamente as partes feias e traumáticas da existência, e por isso digo Amém! Além dos sapatos perigarem rasgar o solado, em caso de demasiada engorda, o leite derramado por si só já fez o serviço de impressionar pela pureza do branco infinito, cor de nada. Então o semi-desnatado serviu bem, inquestionável.
Incapacidade de ver além de dois palmos frente ao nariz, esse ainda é o maior defeito de qualquer ser humano que se preze. Talvez por isso o leite não seja tecnicamente ''limpável'', a cegueira sempre nos impede de enxergar os caminhos para a higiene emocional. A impossibilidade de empatizar com o ser humano que erra, acaba tornando o dedo acusador num juiz irracional, sem mãe, pai ou amor que valha um sorriso no rosto.
Cristificando o homem que sabe perdoar, acabamos esquecendo da capacidade de interpretar também o personagem que com nobreza consegue compreender falhas. O simbolismo da santidade é, acima de tudo, santo por saber perdoar e esquecer. Religiosidades a parte, mesmo um espinho que fosse enterrado com brutalidade na santa testa poderia ser esquecido no momento seguinte, tudo em nome de um amor maior, o fraternal.
A poça branca no fim se tornou inevitavelmente mancha, ficou lá para lembrar do erro. A lágrima realmente não serviu para lavar bulhufas, e as borboletas não puderam voltar o tempo. Mais branco do que leite derramado é um sorriso sincero, que constrói com dentes de tijolo alvo estradas mais longas do que o alcance de qualquer maré láctea de desastre.

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